A cidade de Itabuna é pontuada por extensas áreas abandonadas. A decadência da cidade, resultante, entre outros fatores, das crises da lavoura cacaueira que aprofundaram a decadência econômica da região, está estampada em equipamentos urbanos completamente destruídos, nos casarios históricos em franco processo de desmoronamento, em demolições que desrespeitam edificações tombadas, no rio Cachoeira que recebe dejetos e esgoto in natura, entre tantas outras expressões do completo descaso do poder público pela cidade.
Com o objetivo de criar uma intervenção artística que denunciasse esta situação, nasceu o trabalho OCUPA A FONTE, resultado do Componente Curricular Arte, Comunidades e Espacialidades, ministrado pela professora Alessandra Simões, no campus Jorge Amado, no último quadrimestre de 2019. O projeto partiu das estratégias de ocupação do território urbano pela arte urbana e suas possibilidades para a apropriação da cidade a partir de um olhar crítico e questionador. Os métodos foram: derivas pelo centro da cidade, conversas entre a professora e os estudantes sobre as impressões das derivas, estudos de casos sobre arte urbana e as teorias da arte contemporânea a respeito das linguagens estéticas, elaboração de estratégias e efetivação do projeto.
Buscando gatilhos que pudessem nos motivar a fazer um trabalho de arte urbana para denunciar a situação da cidade, iniciamos derivas pelo centro da cidade, quando nos atentamos para a quantidade enorme de lixo que se acumula ao final do dia na avenida Cinquentenário, a principal via do comércio da cidade. Então, decidimos tratar sobre a temática do lixo. A ideia inicial foi recolher o lixo e levá-lo até uma fonte abandonada na Praça Camacan, uma das principais praças da cidade e que também apresenta muitos sinais de abandono. O enorme chafariz, que já foi um dos principais cartões postais da cidade, também se tornou um local cheio de lixo e colchões abandonados. Mas ocupá-lo com o lixo das ruas de sua proximidade se tornou uma ideia inviável, pois fazer isso iria requerer mais tempo do que o previsto pelo CC e uma produção pesada envolvendo muitas pessoas. Então, decidimos pela confecção de cartazes em formato A3 com a técnica do stencil com o termo “Ocupa a Fonte” para denunciar o abandono do local.
Foram produzidas 400 peças, feitas no campus da universidade com a ajuda de discentes e docentes que frequentavam o local durante determinados horários. A proposta era cobrir a fonte com os cartazes em estilo lambe-lambe, colando as peças em toda sua superfície. Marcamos a ação para uma das noites em que era ministrado o CC. Praticamente todas as aulas foram feitas na praça, mesmo quando eram realizadas apenas discussões teóricas. Isto possibilitou um mergulho no local de ação artística, inclusive, proporcionando interação entre estudantes e jovens que frequentam a praça e que também realizam ações artísticas no local.
Na noite da intervenção, o grupo se reuniu para colar os cartazes; combinando de realizar a ação de forma rápida para não chamar a atenção das pessoas. Em cerca de uma hora, conseguimos cobrir a fonte com os cartazes, movidos pela adrenalina típica das intervenções urbanas feitas sem autorização de entidades oficiais (afinal, a arte perderia seu caráter transgressor). O mais interessante foi o que ocorreu no dia seguinte: logo de manhã cedo, flagramos o pessoal da limpeza municipal limpando a fonte! O que provavelmente não ocorria há muito tempo.
O fato lembrou uma passagem antológica na história da arte urbana: a intervenção “Ossário”, realizada entre 2006 e 2011, pelo artista Alexandre Orion, que através da limpeza seletiva da fuligem depositada nas paredes laterais de túneis de São Paulo criou uma enorme sequência de caveiras ao longo dos túneis. Durante as madrugadas, utilizando apenas retalhos de pano, o artista removia parte da grossa camada de poluição que impregnava as laterais dos túneis. Limpando seletivamente a fuligem despejada pelos carros, Orion desenhou milhares de caveiras nas paredes. O vídeo Ossário mostra a primeira intervenção de Orion e a reação da polícia tentando impedir o artista de “limpar o túnel artisticamente”, e logo em seguida, a equipe da limpeza urbana limpando as paredes com jatos de água. Um dado interessante é a obra Ossário foi um dos primeiros exemplos sobre arte urbana que a professora Alessandra apresentou no CC. A semelhança com as estratégias e resultados do trabalho de Orion confirma que a arte urbana se confirma como uma linguagem legítima e coerente dentro do panorama da arte contemporânea.
BIOGRAFIA
Alessandra Simões é professora de artes no campus Jorge Amado. Fez a graduação em comunicação (Unesp); mestrado e doutorado em artes (USP). Sempre manteve o pé firme nas artes por meio da performance, das artes visuais, do teatro e da palhaçaria. Atualmente, procura trabalhar com as possibilidades da arte urbana e da construção de “objetos poéticos pedagógicos”, isto é, as materialidades que transitam entre a educação e as artes.
FICHA TÉCNICA
Titulo da obra: Ocupa a fonte
Técnica: Intervenção urbana
Ano da obra: 2019
Coordenação: Alessandra Simões
Realização: Alunos e alunas vinculados ao Componente Curricular Arte, Comunidades e Espacialidades.